Entendendo a Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 2

Entendendo a Tradição Espiritual do Ocidente – Parte 2

Por Frater M.F

Na 1ª parte desta série de artigos, analisamos o significado do termo “Tradição” e vimos como a interpretação dada a este termo influencia diretamente a espiritualidade do homem ocidental. Agora, na 2ª parte desta série, iremos analisar a Tradição Espiritual Ocidental a partir das culturas que lhe servem de base, mostrando que a mistura desorganizada que é feita na espiritualidade moderna entre conceitos do Oriente e do Ocidente foge completamente à essência da espiritualidade Ocidental (além de se caracterizar como algo prejudicial ao pensamento do próprio homem ocidental).

Entendendo a Tradição Espiritual Ocidental: suas bases epistemológicas, culturais e espirituais.

Vimos no artigo anterior que ao contrário do que a modernidade comumente prega, não existem “várias tradições”: existem sim manifestações espirituais, culturais e filosóficas, que guardam entre si uma base comum de valores morais de uma só Tradição. A Tradição é perene (eterna) e não está sujeita às impermanências do tempo. Assim, a ideia relativizada (e iluminista) de que a Tradição depende das características políticas, sociais e culturais do ser humano não ajuda a entendermos a essência da espiritualidade do Ocidente: a Tradição Espiritual Ocidental tem uma base de valores que não dependem de diferenças culturas ou sociais, e que vem se manifestando há séculos.

De uma forma geral, podemos conceituar a Tradição Espiritual Ocidental como um corpo de conhecimentos filosóficos, espirituais e teológicos manifestado e transmitido por meio das filosofias de quatro grandes centros espirituais do Ocidente. Assim, a Tradição Ocidental é a manifestação espiritual da própria Tradição perene, através das roupagens adquiridas por quatro substratos culturais do Ocidente (por meio de seus valores culturais, espirituais e filosóficos).

Essas quatro grandes culturas que formam a base da espiritualidade do Ocidente são as seguintes:

a) A cultura pagã e o xamanismo, representadas especialmente através da cultura céltica e das religiões de matriz afrodescendente, por meio da divulgação de um estilo de espiritualidade que comunga diretamente com a natureza;

b) A cultura egípcia, responsável direta pela difusão de valores espirituais relacionados à vida pós-morte, à prática de magia, astrologia e ao culto religioso socialmente organizado;

c) A cultura greco-romana, responsável pela propagação (ou inspiração) no Ocidente de várias correntes filosóficas que serviram de base para o pensamento espiritual ocidental, como o Platonismo, Hermetismo, Estoicismo, e Neoplatonismo;

d) A cultura judaico-cristã, responsável pela estruturação moral da sociedade ocidental como um todo, além da divulgação de valores religiosos e políticos caros à formação do caráter do ser humano no Ocidente, e à sua visão de mundo.

É a partir desses quatro centros de manifestação cultural (Paganismo/Xamanismo, Egito, Grécia/Roma e Oriente Médio) e das manifestações tradicionais derivadas desses centros, que repousam as bases da Tradição Espiritual Ocidental. Tudo que fugir desses 4 grandes pilares, foge ao escopo da espiritualidade do Ocidente. E qualquer coisa que saia desse escopo não pertence à essência ocidental (mesmo que se tratem de formas válidas e ricas de manifestação espiritual). Não se trata aqui de pregarmos um “exclusivismo ocidental” ou de propormos uma “superioridade da cultura ocidental” frente ao Oriente: trata-se simplesmente de constatarmos que a espiritualidade do Ocidente repousa sob os alicerces desses quatro pilares culturais/filosóficos/espirituais, manifestados pela Tradição na vida do homem ocidental (RIFFARD, 1990).

Obviamente, o leitor pode questionar-se se essa análise que estamos fazendo acerca dos alicerces da Tradição Ocidental não soa “eurocêntrica” demais. De certa forma, ela realmente pode soar como uma espécie de “eurocentrismo” (apesar de não ser essa nossa intenção), ao sermos taxativos em estabelecer os centros de manifestação cultural da espiritualidade do Ocidente. Sabemos que o ser humano da

O xamanismo é um dos pilares da Tradição Esotérica Ocidental, pregando um estilo de vida em comunhão com a natureza. Ele é um dos guardiões de valores espirituais tradicionais no Ocidente.

antiguidade ou do período medieval desconhecia os conceitos de “Ocidente” e “Oriente” (pelo menos até o século 8, quando Carlos Magno constituiu uma identidade cultural do Ocidente enquanto algo unificado). Mas de uma forma geral, para fazermos um estudo embasado do significado da Tradição Espiritual Ocidental, precisamos primeiramente nos livrar de quaisquer relativismos que dificultem a análise das bases epistemológicas do homem do Ocidente (GUÉNON, 2017); e isso passa necessariamente por deixarmos claro a você leitor, o que é “ocidental” (espiritualmente falando) e o que simplesmente não é.

Falar abertamente de cada um desses quatro centros culturais da Tradição Ocidental demandaria muito tempo (o que não é o objetivo deste artigo). Futuramente tentaremos abordar a importância de cada um desses pilares filosóficos/culturais para a formação da espiritualidade do Ocidente; porém, o que nos interessa aqui, é saber que a Tradição Ocidental se pauta, a partir de tudo, numa busca pela explicação das coisas materiais.

A espiritualidade do Ocidente se manifesta de uma forma prática, objetiva: o homem ocidental, via de regra, não busca apenas especular sobre Deus e sua existência. Essa é uma diferença primordial entre a espiritualidade do Ocidente e aquela manifestada no Oriente: para o homem ocidental, a comprovação física (concreta) dos efeitos de sua prática espiritual tem um valor quase inestimável. O homem ocidental quer não apenas “estudar Deus”, mas principalmente “experimentá-lo”: ele precisa “ouvir” Deus, “tocar” em Deus, e se possível, “ver” a Deus. E isto tudo deve ser feito não no sentido figurado, mas literal do termo…

O homem ocidental não quer apenas filosofar sobre sua espiritualidade: ele busca uma justificativa para a existência humana, uma explicação para seus problemas, e acima de tudo, soluções concretas para seus dilemas existenciais. Ele quer explicações palpáveis para assuntos muitas vezes sutis; busca justificativas para questões aparentemente sem solução. Por isso, falar de uma Tradição Espiritual Ocidental é antes de tudo “[…] ir ao fundo de seu pensamento (do homem), e de lá lançar-se para as extremidades, porque esse centro abriga todo o conjunto” (RIFFARD, 1990, p. 9, grifo nosso).

Falar de espiritualidade tradicional no Ocidente é falar de algo que é completamente alheio ao pensamento científico moderno. A Tradição Espiritual Ocidental não se respalda e nem busca se aproximar da ciência moderna, por um motivo muito simples: a busca espiritual é uma busca por respostas de assuntos que não são objeto de estudo da ciência materialista (“vida pós-morte”, contatos com espíritos e entidades, consulta a oráculos, existência de Deus, etc.). A ciência moderna até admite seus limites e reconhece que não é capaz (e nem tem intenções) de trabalhar sobre esses assuntos. Porém, mesmo quando reconhece sua impossibilidade de atuação nessas questões, a ciência moderna o faz de forma pejorativa: assim, é comum que a ciência materialista, ao se referir à espiritualidade, o faça de maneira vexatória, humilhante e escandalosa (RIFFARD, 1990).

Ainda assim, a espiritualidade Ocidental não deve nada à ciência moderna. Ao contrário do Esoterismo Moderno (que é uma derivação da Tradição Espiritual Ocidental), que tentou e ainda tenta (de maneira inadequada) se alinhar ao pensamento científico materialista (conforme veremos ao longo desta série de artigos), a espiritualidade tradicional do Ocidente não guarda e nunca guardou nenhuma intenção de se aproximar, compactuar ou dialogar com os valores iluministas que predominam no método científico moderno. Isso

A Tradição Esotérica Ocidental não se alinha aos preceitos do método científico moderno, porque compartilha de valores e preocupações distintas.

porém, não significa que a Tradição Espiritual Ocidental seja “rival” da ciência moderna (ou negue seus avanços e descobertas no Ocidente): são dois campos de conhecimento distintos, que não precisam (e nem tem) a mínima necessidade de serem unificados ou aproximados “à força”. De certa forma, “o Esoterismo se revela por si mesmo. Não precisa de um psicanalista ou de um crítico. Possui sua própria linguagem” (RIFFARD, 1990, p. 28).

A essa altura, já deve ter ficado claro ao leitor qual o campo de atuação da Tradição Espiritual do Ocidente: a busca por respostas a questões que incomodam o ser humano (questões essas que não podem ser respondidas pelo método científico moderno). A partir disso, podemos também evidenciar outra coisa: a espiritualidade oriental, representada no Esoterismo Moderno especialmente por elementos do Hinduísmo e do Budismo, não faz parte do corpo de conhecimentos trabalhados na Tradição Ocidental. Essa, por si só é uma constatação que parece contradizer (e irritar) profundamente os espiritualistas modernos, entusiastas de um conceito “democrático” de “sincretismo espiritual”, e que defendem a existência de uma prática espiritual “fast food”, à base de uma mistura desenfreada de elementos que junte “o melhor de cada corrente espiritual”.

Não estamos dizendo que a espiritualidade do Oriente não tem seu valor: a questão não é essa. Ela tem seu valor e sua beleza, e certamente possui resultados comprováveis entre seus adeptos (alguns, às vezes, até ocidentais). Porém, o que está em jogo aqui é outra coisa: a construção da identidade da Tradição Espiritual Ocidental faz uso de valores que não são abordados (ou mesmo compreendidos) pela espiritualidade do homem oriental (e vice-versa). E isso ocorre porque a Tradição adotou roupagens diferenciadas para se manifestar ao homem oriental e ao ocidental (ainda que essas roupagens guardem elementos morais em comum).

É por isso, que argumentos do tipo “Yoga funciona”, “meditação budista é ótima” ou “a espiritualidade oriental é mais honesta que a ocidental”, não justificam ou explicam a inclusão sem critérios de conceitos orientais à espiritualidade do homem ocidental. Esses são argumentos comumente usados pela modernidade para justificar sua busca por algo que contradiga aquilo que lhe desagrada no Ocidente (especialmente o pilar judaico-cristão), fazendo-a correr atrás de um “conhecimento secreto” ou de uma “verdade espiritual autêntica” em elementos espirituais que sejam alheios ao modo de vida do homem ocidental. Porém, essa aproximação com o Oriente na verdade foi feita no século 19, através da expansão do Esoterismo Moderno (o que iremos ver com detalhes ao longo desta série de artigos).

A espiritualidade oriental (que nem sequer é conhecida como “esotérica” pelos adeptos de suas culturas) não compactua dos valores do homem ocidental, ao contrário: o raciocínio do homem oriental é pautada em preocupações

Apesar de ter sua beleza e funcionalidade, a espiritualidade oriental (tão incentivada pelo Esoterismo Moderno) muitas vezes contradiz valores do homem ocidental e não se caracteriza como parte da Tradição Espiritual do Ocidente.

absolutamente distintas daquelas demonstradas pelo homem ocidental: enquanto o oriental tende a ter uma forma de raciocínio mais psiquista (focada em sua própria mente e na qualidade de seus pensamentos) e preocupada com o bem-estar de sua sociedade (holismo), o homem ocidental tende a se preocupar mais com aquilo que é externo a si (exterior à sua mente), e busca na espiritualidade formas concretas de melhorar sua própria existência e a de seus semelhantes (às vezes, nem isso). Isso faz com que o homem ocidental aparente tenha uma espiritualidade mais “egoísta” que o homem oriental.

A verdade é que nem um nem o outro estão errados: tratam-se de pontos de vista essencialmente distintos sobre o mundo e o sentido da vida. Isso se expressa de forma muito clara na espiritualidade: o oriental procura meditar, “esvaziar sua mente”; o ocidental anseia por resultados visíveis, através de evocações, invocações e orações. Assim,

“O Oriente se baseia na realidade psíquica, isto é, na psique, enquanto condição única e fundamental da existência. […] Trata-se de um ponto de vista tipicamente introvertido, ao contrário do ponto de vista ocidental que é tipicamente extrovertido. […] A introversão é, se assim podemos nos exprimir, o estilo do Oriente, ou seja, uma atitude habitual e coletiva, ao passo que a extroversão é o estilo do Ocidente” (JUNG, 2011, p. 17-18).

Mesclar (sem critérios ou justificativas) aspectos espirituais orientais à espiritualidade do Ocidente, usando-se o argumento de que “tudo que é bom deve ser aproveitado”, é algo absolutamente alheio à essência da Tradição Ocidental: é um desserviço espiritual, tanto ao Oriente quanto ao Ocidente. A própria Psicologia (tão admirada e utilizada no Esoterismo Moderno) faz questão de enfatizar as diferenças de interesses e de raciocínio entre orientais e ocidentais, e por esse motivo fizemos questão de citar Jung (2011), uma vez que ele é considerado um dos baluartes da espiritualidade moderna.

Apesar disso, ainda podemos afirmar com clareza que a espiritualidade oriental guarda em si uma base dos valores da Tradição perene, que também são abordados na espiritualidade do Ocidente. É essa base que faz com que, em certos momentos, certos elementos e símbolos espirituais (como a cruz, por exemplo) sejam comuns em culturas aparentemente inconciliáveis (GUÉNON, 2017). Todavia, essas semelhanças podem ser abordadas a nível comparativo, mas nunca unificadas de maneira grosseira e ilógica (em nome de um ideal pseudo-ecumênico).

Finalmente, gostaríamos de salientar ao leitor, que há três características primordiais do pensamento espiritual do Ocidente, que merecem ser citadas agora como marcas registradas da Tradição Ocidental (e que podem ajudar você, caro leitor, a classificar mais facilmente a espiritualidade do homem do Ocidente):

  • A importância do “segredo” na prática espiritual;
  • A crença na existência de seres espirituais (e no contato com eles);
  • A diferenciação entre indivíduos “iniciados” (praticantes de “mistérios espirituais”), e “não-iniciados” (praticantes de uma espiritualidade mais básica e coletiva, comumente denominada “exotérica”).

O “segredo” é uma das características primordiais da Tradição Espiritual Ocidental: por causa dele,não se pode nem se deve falar abertamente das práticas espirituais que se faz.

No pensamento ocidental, cada ser humano deve ser capaz de descobrir a verdade a partir de sua própria experiência (mesmo que essa verdade seja comum a todos que a busquem). Assim, revelar segredos de práticas espirituais torna-se prejudicial não pela revelação em si, mas pelo fato de prejudicar a busca dos outros pela verdade, conforme relata Dubuis: “Do not hide the processes which lead to Knowledge, but keep very quiet about the nature of the experiements and experiences which result from the acess to this Knowledge [1]”. (DUBUIS, 2000, p. 6)

A crença na existência de seres espirituais (e no contato com eles) também é uma característica básica da espiritualidade do Ocidente. Essa característica é fruto da influência direta do xamanismo, onde o operador frequentemente tem contato com entidades das mais diversas espécies (anjos, demônios, elementais, desencarnados, etc.), gerando uma espécie de trabalho espiritual específico conhecido no Ocidente como “Teurgia”.

Finalmente, a diferenciação entre indivíduos “iniciados” e “não-iniciados” é outra característica comum na Tradição Ocidental, que foi ainda mais aprofundada no Esoterismo Moderno. No Ocidente, a história nos mostra que é comum separar-se indivíduos por sua classe social, ou por suas “qualidades”. No caso da espiritualidade, essa separação é feita da seguinte forma: os indivíduos devidamente “preparados” são introduzidos aos mistérios sagrados de uma religião ou filosofia, através de cerimônias específicas (as chamadas “iniciações”). Eram esses indivíduos que tinham acesso ao conhecimento “interno” ou reservado de certas religiões (chamado de “conhecimento esotérico”, com a letra “S”).

Já ao resto da população, era comumente destinado um tipo de conhecimento básico, coletivo, comum a todos que não fossem iniciados nos mistérios de determinada religião. Esse era o chamado conhecimento “Exotérico” (com “X”), um corpo externo de saberes que era transmitido a todos os que se mostravam incapazes de aprofundar-se nos mistérios de determinado corrente filosófica ou religiosa.

No próximo artigo da série, discutiremos como a Tradição Espiritual Ocidental manifesta-se de maneira prática nas diversas correntes espirituais e religiosas do Ocidente, através de suas “três artes espirituais” (o chamado “Trivium Hermético”).

REFERÊNCIAS

DUBUIS, Jean. The Fundamentals of esoteric Knowledge. Triad Publishing, Gainesville-EUA, 2000.

GUÉNON, René. A crise do mundo moderno. Instituto René Guénon de estudos Tradicionais – IRGET. São Paulo: 2017.

JUNG, Carl Gustav. Psicologia e religião oriental. Vozes. Petrópolis-RJ: 2011.

RIFFARD, Pierre. O Esoterismo: antologia do esoterismo ocidental. Ed. Mandarim. São Paulo: 1996.

[1] “Não esconda os processos que levam ao conhecimento, mas tenha cuidado com a natureza dos experimentos e com as experiências que resultam do acesso a esse conhecimento”. Tradução livre.

Frater M.F

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